terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Trecho - A Sociedade

Por exemplo, este senhor parado na minha porta, me olhando. Ele está bem ali. O quadro dele é terrível, não vai mexer nada do corpo e é capaz, que tenha seqüelas no cérebro. Está todo quebrado. Perdeu a esposa no acidente, a culpa não fora deles. Ninguém entenderia se ouvisse, mas não vai ter ninguém para cuidar dele como precisará. Eu estou quebrado também. Muito aborrecido. Muito decepcionado com a vida.  A mesma vida que quero dar a eles, mas... Na verdade, eu queria entregar como era antes. Viro-me e pergunto a ele:
- O que você quer Jorge?
Ele nada faz, ele está olhando para o corpo dele, decepcionado com tudo o que lhe aconteceu, soube que ela morreu e que ele não tem ninguém. Então eu faço o pior. Suspiro e me levanto daquela cadeira dura, olho bem para ele e me inclino até o seu ouvido. Olho o colchão com o olhar preso nele para não tentar ver o que vai acontecer. É instantâneo. Eu digo:
-Não há culpa em ir embora, amigo, a escolha é sua. Se estiver, agora mesmo de olho em você, é porque te deram a chance de escolher. Faça o melhor por você e eu farei também. De qualquer forma, você não está sozinho.
E me ergo olhando a janela. Viro meu rosto para ele e ele agora me olha. Sim, ele me ouviu. Seus olhos azuis iluminam seus cabelos brancos. Ele está triste. E eu devastado. No fim, eu também sempre morro. Ele olha novamente para seu corpo. Desfaz-se dele com um aceno, um tchau. E vira-se para a porta e vai embora. No mesmo instante, eu ouço as máquinas apitarem. Outros médicos chegam. Eu me sento na mesma cadeira e continuo olhando a janela. Porque ali vem a melhor parte.

Enquanto meus companheiros tentam em vão salva-lo, ele atravessa um jardim e abraça a sua esposa enquanto o sol brilha como se nascesse deles. Do reencontro deles. É sempre assim, sempre vem alguém buscá-los.